Arcos do silêncio
A recente intervenção artística realizada nas paredes interiores dos Arcos do Bixiga — ou, como prefere a imprensa quatrocentona aqui da provínicia, dos "Arcos do Jânio" — é um dos mais significativos episódios da história do preconceito paulistano. Falta água, falta luz, sobram tarifas, mas nada disso importa: para o paulistano orgulhoso de sua pátria bandeirante, o verdadeiro motivo para se manifestar é contra esta incivilizada e popularesca demonstração bárbara de vandalismo cometido naquele seu importante — e, supõe-se, dado todo o estardalhaço, cotidianamente relembrado e celebrado — patrimônio cultural.
Os argumentos têm sido recorrentes, tanto em seu conteúdo quanto em sua superficialidade: fala-se tanto da suposta condição de "patrimônio histórico tombado" de que gozariam aqueles arcos quanto da igualmente suposta importância da história italiana/paulistana que eles representariam e que seriam superiores à manifestação "culturalmente inferior" representada pelo grafite. O furor anti-grafite se mistura ao furor anti-haddadista de parte da população, o que apenas colabora para que os discursos se embaralhem de forma cada vez mais preconceituosa e pouco razoável.
Não tenhamos qualquer ilusão: a questão se trata, de fato, de um problema político, assim como é igualmente na esfera da política — e não na da técnica, como querem fazer crer alguns profissionais do campo do patrimônio que mal conseguem disfarçar um elitismo arraigado em suas práticas — que se encontram quaisquer questões ligadas ao patrimônio cultural. Não se trata, porém, de política partidária, nem dos Fla-Flus usuais que a tem caracterizado nos últimos anos no país: o que está em disputa são quais vozes são ouvidas na cidade, quais vozes ganham legitimidade social e quais são silenciadas. Trata-se, enfim, da disputa da cidade: e, quando avaliamos a questão com mais cuidado, talvez percebamos que de fato há vozes nessa peleja toda que continuam apagadas e enterradas, ainda mais emudecidas em meio a esta disputa toda entre haddadistas e anti-haddadistas. Seja a população que foi expulsa do local há trinta anos, quando o casario construído sobre os arcos foi demolido, sejam os próprios grafiteiros e pixadores anônimos da cidade, que vêm sendo atacados com as mais variadas formas de preconceito sem qualquer espaço para manifestação de réplica que não sua própria ação transgressiva.
Vale a pena percorrer o episódio todo e identificar algumas contradições.
escrita da cidade
Gosto do grafite e do pixo, mas não nutro por tais práticas qualquer maior intimidade. Sinto-me, caminhando pela cidade, uma espécie de voyeur: admiro de longe as mais variadas intervenções — sejam elas as pinturas complexas daquilo que costuma ser chamado de "grafite", sejam as mais simples e não menos desafiadoras tags, stickers, lambe-lambes ou estêncil — na mesma medida em que me fascinam os movimentos necessários para produzi-las, as alturas a serem vencidas e os obstáculos a serem ultrapassados para que tais marcas urbanas sejam impressas. Trata-se, porém, de um fascínio distante, um fascínio de alguém que olha de longe sem a coragem de replicar a ação — alguns diriam tratar-se de um fascínio covarde ou por demais acomodado, mas prefiro pensar nele como uma espécie de fascínio não diferente daquele do colecionador ou de um curador silencioso.
Os significados que construo a partir da admiração das práticas do grafite, pixo, stickers, etc., são, portanto, igualmente distanciados e por demais pessoais. Os grupos diretamente envolvidos com a inscrição de tais marcas no espaço urbano nutrem por tais registros e por suas práticas outros significados, sem dúvida — assim como desenvolvem seus ritos próprios, incompreensíveis para aqueles que não os compartilham. É justamente, porém, esta minha distância da coisa que me fascina no grafite/pixo/stickers/etc.: ao caminhar pela cidade, eu a leio como quem lê um manuscrito indecifrável, como quem se depara com uma imagem repleta de códigos partilhados por poucos mas ainda assim constituída de uma integridade e diversidade atraentes para o espectador deles ignorante. O que talvez me fascine seja justamente esta espécie de espontaneísmo do "grafismo urbano": trata-se de uma ação que surge de forma meio anônima para o espectador urbano — sujeito igualmente anônimo, aliás — , constituindo uma forma de comunicação marcada pelo ruído, pela incompreensibilidade por excelência de uma paisagem partilhada por completos desconhecidos.
É neste sentido que vejo o grafite, o pixo, o estêncil, a colagem de lambe-lambes e stickers como uma prática cultural que bem poderia ser considerada patrimônio cultural imaterial de São Paulo. Simplesmente não consigo entender esta cidade sem tais marcas e registros: uma São Paulo sem grafite/pixo/etc. me pareceria ainda mais sem vida, ainda mais muda.
Talvez seja justamente esta condição anônima, meio espontânea, meio marginal da leitura que faço do grafite/pixo que tenha feito com que a intervenção nos Arcos do Bixiga não tenha me agradado tanto quanto outras que vejo pela cidade — em princípio, eu a considerei pouco "autêntica" (palavra que detesto, mas que utilizei sem pensar em meus próprios preconceitos). Mas seria excessivamente desonesto e injusto de minha parte criticar o caráter "não-espontâneo" da intervenção, justamente pelo meu afastamento deste universo e pela leitura até excessivamente idealizada que faço do próprio universo do grafite/pixo. Deixando de lado este preconceito bobo, do ponto de vista plástico, porém, o que vejo nos arcos é um revestimento vermelho e amarelo sem graça sobre os tijolos e peitoris emoldurando as belas grafitagens no interior deles. No fundo, não fossem os belos grafites recentes, aqueles horrososos arcos vermelhos e amarelos continuariam invisíveis à cidade que os vinham maltratando até então e para a qual eles, na prática, pouco significavam.
"preservar" cultura
É nesta perspectiva que penso a inserção daquela infra-estrutura urbana caracterizada pelos arcos na cidade: como suporte de manifestações culturais ao mesmo tempo em que é um protagonista de manifestações com as quais ela dialoga. Parece-me por demais limitado imaginar aqueles arcos presos sob uma redoma, intocáveis, reificados, fetichizados. Ou melhor: eles até podem ser transformados nesta espécie de louça guardada em uma cristaleira, mas parece-me que neste caso os arcos simplesmente perdem sua condição de bem cultural, de suporte de manifestações culturais, de suporte de diálogo com os personagens urbanos. Colocar os arcos sob uma redoma de vidro — condição, aliás, a que se submetem a maior parte dos monumentos urbanos — tende a gerar apenas um de dois resultados: ou o monumento apela fortemente para o turismo de massas (e sua reificação é cada vez mais estimulada como experiência a ser trocada na forma de mercadoria) ou ele simplesmente cai no ostracismo. Quando esquecido, quando alijado da possibilidade de estabelecimento de novos significados por parte dos sujeitos para quem ele pode estabelecer novas narrativas, tal monumento simplesmente perde sua condição de bem cultural — por mais que meia dúzia de acadêmicos ainda tente se referir a ele como um documento importante por qualquer motivo que seja. O bem simplesmente perde sua existência enquanto referência cultural.
Meu fascício pelos tais "grafismos urbanos" de que falava tem um pouco a ver com esta condição de diálogo estabelecida com determinados suportes materiais na cidade: os "bens culturais", neste caso, participam de fato da vida da cidade. Sem eles, as práticas culturais se inviabilizam, na medida em que elas dependem da relação com aquela matéria e com todos os eventuais significados — históricos, afetivos, simbólicos — que possam ser estabelecidos pela míriade de sujeitos que povoa o urbano. O grafite/pixo opera como uma espécie de mediação, como uma espécie de índice desta relação entre matéria e práticas culturais, entre o estabelecimento de novos significados e narrativas sobre um espaço cotidianamente partilhado por anônimos que, no entanto, se comunicam silenciosamente.
Preservar o bem cultural, parece-me, significa antes de tudo atentar para a maneira como ele dialoga com as práticas culturais dele próximas. Alijá-lo delas em prol de sua suposta "preservação" material, em prol de um suposto combate à sua "descaracterização" significa apenas alijá-lo de sua condição cultural, alijá-lo inclusive da própria história. Nada mais descaracterizador de um bem "cultural" que o congelamento de sua forma.
Pois cultura, afinal, não se preserva: para "preservá-la", é preciso garantir sua condição mutável.
É justamente o recurso à reificação a estratégia que vem sendo utilizada para a demonização da intervenção sobre os arcos. Ao invés de tomar tal interveção — necessariamente efêmera, aliás, como são em geral as práticas de arte urbano — como uma interessante prática cultural a dialogar com aquela base material, são muitas as manifestações na imprensa que preferem tomar o conjunto de arcos como um documento inatacável, como um artefato necessariamente alijado do espaço urbano (e, por consequência, da cultura urbana).
Alega-se que o grafite descaracteriza os arcos. Alega-se que o grafite desrespeita a história dos imigrantes italianos que teriam trazido ao Brasil a técnica de construção de arcos em tijolo para formação daquele muro de arrimo. Alega-se que o grafite é invasivo a uma relíquia do processo de urbanização paulistano. São muitas as alegações, mas todas elas em geral, além de tentar reduzir o bem cultural a um documento associado a uma narrativa histórica com recorte ideológico muito específico — ignorando as múltiplas narrativas possíveis que o bem suscita e elegendo algumas poucas como as inquestionavelmente mais importntes — recorrem fatalmente a argumentos de autoridade (corroborados, em geral, pelo fato dos arcos terem sido "tombados" como patrimônio da cidade).
Aí está o primeiro problema: por que a suposta narrativa histórica dos poucos intelectuais consultados pela imprensa é hierarquicamente superior às narrativas construídas pelos outros sujeitos urbanos com quem os arcos se relacionam — incluindo as dos próprios autores da intervenção? Os argumentos de autoridade são prática recorrente dos órgãos de preservação, estruturas normalmente dominadas ou pela burocracia estatal ou (nos melhores dos casos) por certa ilustração acadêmica distante do povo. Os argumentos de autoridade, na prática, são utilizados como forma de atestar a legitimidade de certas narrativas sobre outras — narrativas que ganham suposta legitimidade social e política pela ação dos conselhos de preservação, estruturas normalmente tecnocráticas e antidemocráticas.
A reificação de certas narrativas sobre outras é o primeiro passo para o total silenciamento de vozes e memórias outras que não aquelas privilegiadas pelo tombamento.
vozes silenciadas
A referência aos arcos do Bixiga como "Arcos do Jânio" também tem sido curiosa: o ex-prefeito de fato foi o responsável pela redescoberta da estrutura nos anos 1980, mas desde então ela sempre fora chamada de "arcos do Bixiga." A insistência, neste momento em particular, em associar o monumento àquele que foi aparentemente seu "salvador" é bastante significativa, pois a partir dela começam a surgir mais indícios de silenciamento de vozes esquecidas.
Correndo o risco de abusar do cliché benjaminiano de que toda obra da civilização é também uma obra de barbárie, é preciso lembrar que Jânio Quadros apenas "salvou" os arcos pois ele estava interessado na expulsão dos habitantes de baixa renda que ocupavam o casario eclético construído nos anos 1930 sobre sua estrutura. Com efeito, a operação de salvamento dos arcos talvez tenha sido uma das mais pioneiras ações de promoção de gentrificação no Bixiga após os processos que levaram à suposta "degradação" do Centro de São Paulo.
Em 2011, o excelente blogue Quando a cidade era mais gentil havia destacado algumas imagens recuperadas da imprensa da época. Reproduzo uma delas abaixo:
É evidente a tentativa de limpeza da área: trata-se, afinal, de um trecho da paisagem central que serve de porta de entrada para muitos endinheirados que chegam ao Centro pela avenida 23 de Maio: a presença de uma população encortiçada em tão importante vitrine era simplesmente indesejável para prefeito tão higienista.
O "salvamento" dos arcos e sua "preservação" são, na prática, uma operação de silenciamento daqueles que habitavam aquele casario e que, de fato, em sua prática cotidiana, produziam as manifestações culturais que caracterizavam aquele espaço naquele momento.
Talvez os arcos, por outro lado, sejam de fato um monumento a ser celebrado: são talvez o mais legítimo monumento paulistano ao higienismo que tanto caracteriza a história da cidade. Um monumento à exclusão, um atestado de que lugar de pobre não é no centro. A celebração da técnica perante a vida, o primado do artefato excepcional sobre o morar cotidiano. Talvez assim ele devesse ser consolidado: como um Memorial da Gentrificação, lugar a servir de peregrinação a todos que acham que, como disse certa vez uma burocrata a serviço da Prefeitura, quem quer morar em São Paulo tem que conseguir pagar.
Os silenciamentos não se resumem à trajetória de destruição criativa dos Arcos. Continuam silenciados, de algum modo, todos os artistas de rua que atuam em São Paulo sob as mais adversas condições. Silenciados sobretudo pela abordagem rasa da imprensa, que resume tudo a vandalismo e que toma a intervenção nos "Arcos do Jânio" como símbolo da barbárie que supostamente assola a cidade. Mas silenciados também por uma relação problemática com a própria prefeitura aparentemente progressista que promoveu a intervenção — algo ilustrado pela recente polêmica da regulamentação das apresentações de rua, pela proibição dos "pancadões" ou mesmo pela situação de guerra com as forças policiais a que estão submetidos os pixadores na cidade, na qual a morte de jovens tem sido vista como resultado quase natural da ação policial.
Como comentei acima, sou uma espécie de "voyeur" da arte urbana: sou fascinado por ela, ainda que completamente afastado de seus rituais e desconhecedor de seus personagens, admirando-a de certa distância. Em meio a esta conversa ensurdecedora entre aqueles que apedrejam o grafite e aqueles que defendem o prefeito, fico curioso em ouvir dos artistas de rua o que pensam. Este silenciamento, junto daquele dos anônimos expulsos de suas casas por Jânio, talvez seja o mais incômodo.