Se quisermos tomar a universidade pública por uma nova perspectiva, precisamos começar exigindo, antes de tudo, que o Estado não tome a educação pelo prisma do gasto público e sim como investimento social e político, o que só é possível se a educação for considerada um direito e não um privilégio, nem um serviço.

Marilena Chauí, A universidade pública sob nova perspectiva, 2003, p. 11.

Resposta ao editorial da Folha de São Paulo do dia 19 de agosto de 2014

Tantos são os absurdos existentes no editorial da Folha de S.Paulo do dia 19 de agosto de 2014 a respeito da Universidade de São Paulo que eles merecem uma resposta específica, ponto por ponto. Intitulado "USP contra o muro", tal editorial questiona a capacidade de gestão da universidade, a extensão de seu corpo funcional e, em última instância, questiona a própria necessidade do Estado continuar a financiar a universidade. Como funcionário, estudante e membro do movimento grevista da Universidade, sinto-me extremamente ofendido com as declarações do jornal paulista.

Em princípio, os números distorcidos utilizados pelo editorial já seriam facilmente refutados pelo artigo do professor Vladimir Safatle publicado pela mesma Folha no mesmo dia 19 de agosto ("Números não mentem"). Para além dos números, porém, é preciso questionar fortemente a campanha de desqualificação dos servidores da Universidade promovida pelo jornal da família Frias. A quem interessa tanto ódio contra funcionários públicos? A quem interessa tanto ódio por uma autarquia pública responsável por 1/4 da produção científica nacional? A quem interessa desqualificar o trabalho daqueles que cotidianamente são os responsáveis pela mais importante universidade do país?

O editorial será comentado, abaixo, parágrafo por parágrafo.

1.

É chegado o momento de definições na Universidade de São Paulo, a mais importante instituição de pesquisa do país. Se não conseguir sair do fosso administrativo em que se meteu, mesmo recebendo R$ 5 bilhões no ano do governo estadual, continuará aprisionada num círculo vicioso.

Desde o início o editorial naturaliza a suposta crise orçamentária vivida pela USP, chegando mesmo a sutilmente considerar exagerados os R$ 5 bilhões recebidos pela Universidade. Como já vem sendo denunciado pelo Sindicato dos Trabalhadores (Sintusp) e pela Associação de Docentes (Adusp) há meses, o governo do estado de São Paulo promove desde pelo menos 2009 uma série de expurgos no repasse devido em lei às universidades estaduais. Em resumo, tais denúncias provam, com argumentos técnicos coerentes e precisos, que o governo do estado, por meio de manobras administrativas e fiscais obscuras, aplica os 9,57% do ICMS a que têm direito as três universidades não sobre o montante bruto arrecadado (que em 2013 foi de aproximadamente R$ 120 bilhões), mas sobre um valor bastante reduzido próximo a R$ 80 bilhões, pois teriam sido descontados uma série de outros repasses feito pelo governo. Ao invés de repassar os 11,5 bilhões a que teriam direito as três universidades, o governo do estado repassou apenas R$ 8,3 bilhões.

Fica a pergunta: o que fez Geraldo Alckmin com o dinheiro desviado da educação? Ao invés de repercutir estas sérias denúncias contra o governo de São Paulo, porém, o jornal da família Frias prefere blindar o governador — sobretudo em um momento em que o estado vive séria crise de abastecimento de água e de escândalos nas licitações do metrô.

Caso os expurgos do ICMS continuem a ser promovidos por Alckmin, a USP realmente estará em um "círculo vicioso" de crise financeira — mas a raiz do problema, curiosamente, não interessa à Folha, apenas suas sequelas superficiais.

Ainda sobre o financiamento público das universidades (e da educação, de um modo geral), recomendo o vídeo abaixo:

2.

É mais que bem-vindo, portanto, o plano de enxugamento do quadro de servidores da USP apresentado pelo reitor Marco Antonio Zago. Podem-se discutir os detalhes, mas está claro que houve expansão irresponsável do funcionalismo.

Dada a naturalização da suposta crise orçamentária promovida pela Folha, o editorial considera o Projeto de Demissão Voluntária da Reitoria da USP como algo igualmente natural e bem vindo. Além disso, naturaliza também a suposta "expansão irresponsável".

Como mostra o prof. Vladimir Safatle em sua coluna do dia 19 de agosto, porém, praticamente não houve de fato expansão do corpo de funcionários desde 1989, quando a universidade passou a ter autonomia orçamentária. Ao contrário, a Universidade sofreu uma redução de cerca de 5% do número de funcionários entre 1989 e 2012. Já o número de docentes cresceu apenas 4%, embora o número de estudantes tenha quase dobrado de tamanho (o que leva, obviamente, a uma maior quantidade de estudantes por professor e a todos os problemas que isto acarreta).

"Irresponsável", portanto, não foi a expansão, mas, ao contrário, a ESTAGNAÇÃO no número de funcionários técnico-administrativos e docentes frente à expansão no número de vagas e à construção e incorporação de novos campi (como Lorena e o campus Leste de São Paulo)!

Para mais detalhes, segue excelente análise da Adusp: http://www.adusp.org.br/files/database/2014/Em_defesa_da_USP.pdf

3.

Se isso não for verdade em termos operacionais, por certo o é de um ponto de visto financeiro. A universidade compromete hoje 106% de sua receita anual com a folha de pagamentos. O descalabro gerencial dilapida seus fundos de reserva e compromete o que lhe resta da capacidade de investir.

Não consigo compreender que hierarquia de valores seja esta entre "termos operacionais" e "termos financeiros", sobretudo quando levamos em conta o fato de que o comprometimento de 106% da folha de pagamento só existe porque o governo de São Paulo repassa menos do que a lei exige (como foi apontado no item 1, acima). Caso o governo aplicasse corretamente os 9,57% do ICMS que as Leis Orçamentárias Anuais têm exigido desde 1995, o comprometimento com folha de pagamento já estaria reduzida a valores bastante mais saudáveis.

Senão, vejamos, a partir de um cálculo grosseiro: se o estado arrecada cerca de 100 bilhões de ICMS mas aplica a cota-parte apenas sobre 80 bilhões, são quase 2 bilhões que deixam de ser repassados, dos quais cerca de metade vai para a USP. É, portanto, cerca de 1 bilhão de reais que não são destinados à universidade e que não iriam incidir sobre a folha de pagamento (e reduzindo seu peso para algo próximo a 80%).

Não existe crise orçamentária, o que existe é indisposição por parte do governo em repassar a quantia correta e indisposição por parte do magnífico Reitor em exigir o repasse correto ao governador.

Nada contra Programas de Demissão Voluntário, desde que necessários. Não parece ser o caso na USP — a quem interessa, portanto, propagar mentiras sobre o orçamento como a Folha de S.Paulo vem fazendo?

4.

Numa reação desligada da realidade, o sindicato dos funcionários afirma que o plano visa destruir a USP. Mas o que de fato corrói os alicerces da instituição é a subordinação de sua missão acadêmica e científica à politicagem corporativista que motiva as sucessivas greves na universidade.

Dados os números expostos acima, será que é realmente o sindicato de funcionários que está desligado da realidade ou é a Folha de S.Paulo? Independente disto, neste parágrafo o jornal da Família Frias explicita seus objetivos: ela não está minimamente preocupada com a universidade, mas está interessada apenas em desqualificar funcionários públicos — os quais constituem, como já ressaltamos, um conjunto fundamental de quadros que cotidianamente atuam para que a USP continue a ser responsável pela extensa produção científica e acadêmica pela qual ela é hoje.

A Folha distorce os números e omite informações para culpabilizar unicamente os funcionários. Curiosamente, o magnífico reitor Zago já teria declarado em uma de suas falas públicas seu incômodo com a "dinâmica sindical" no trato com funcionários e professores. Seria um discurso orquestrado contra a organização dos trabalhadores? Tanto o reitor quanto a Folha se esforçam para associar a organização autônoma dos trabalhadores com um entrave ao desenvolvimento.

5.

Zago acredita ser factível economizar 6,5% da folha até 2016 se aderirem a seu programa de demissões voluntárias 2.800 dos 17.500 servidores que não são docentes.

Além disso, o reitor propõe entregar para a administração direta do Estado unidades como o Hospital Universitário, em São Paulo, e o Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais, em Bauru.

Mais uma vez: qual a necessidade de alienar 1 a cada 6 funcionários da USP em um momento em que o número de funcionários atual é inferior ao patamar de 1989? Qual a necessidade da Reitoria incentivar a redução de recursos humanos quando no dia-a-dia da universidade vivemos, na prática, falta de pessoal para atividades elementares (como manutenção)? Enfim: nada contra o PDV, mas qual a necessidade de justificar supostas economias com pagamento de salário enquanto o governo do estado se recusa a repassar o mínimo exigido em lei para as universidades?

A reitoria e a Folha estão realmente preocupadas como o orçamento ou em justificar o sucateamento do dia-a-dia dos profissionais da USP?

O mesmo vale para o desligamento dos hospitais da universidade: por que a Universidade vai dar de graça para o governo parte de seu patrimônio enquanto o mesmo governo está se recusando a repassar para as universidades o mínimo exigido em lei?

6.

Será necessário, porém, convencer o Conselho Universitário do imperativo de agir o quanto antes. Se o colegiado até aqui se omitiu no dever de repor a USP nos trilhos, por que se moveria agora? Por instinto de sobrevivência, talvez.

Sem querer fazer o papel de advogado do diabo, mas é preciso fazer justiça: o Conselho Universitário não só é o alvo errado da Folha como sequer foi consultado por Zago desde o início do ano para discutir os problemas do orçamento. Em junho, o próprio Conselho tomou a iniciativa de convocar uma reunião para discutir o reajuste salarial que Zago se recusa intransigentemente a promover. O magnífico reitor, porém, cancelou de última hora a reunião e nunca mais a reconvocou.

Para além disso, o Conselho é expressão da falta de democracia na Universidade: a representação dos funcionários não docentes não pode exceder o número de três conselheiros, não importa quantos funcionários atuem na USP. Já a quantidade de professores é de várias dezenas. O Conselho, assim como o Reitor, está longe de ser um representante legítimo da comunidade universitária.

7.

Os vencimentos dos servidores subiram 80% nos últimos anos. O quadro de funcionários não docentes cresceu 13% de 2010 a 2013, e o número de alunos aumentou 5%. Há algo de errado nestas contas.

Não são as contas que estão erradas: é o recorte utilizado pela Folha que está enviesado. Como já foi apontado acima, entre 1989 e 2012, houve REDUÇÃO no número de funcionários na ordem de 5%. Já o crescimento no número de estudantes foi de quase 90%, acompanhado de apenas 4% de aumento no número de professores.

Trata-se, evidentemente, de má-fé da Folha ao limitar seu recorte a um período tão pequeno.

Já o suposto aumento de salário nada mais é que a reposição de perdas acumuladas desde a década de 1980 e reiteradas por todo o período de arrocho neoliberal. Como demonstrou o prof. Safatle em sua coluna, o poder de compra real dos docentes sofreu uma redução de cerca de 9,5% em relação ao salário de 1989, ainda que tenha havido aumento porcentual nos últimos anos.

8.

Hoje, a proporção é de pouco mais de cinco estudantes por servidor. Um número semelhante ao da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que não é bem um exemplo de eficiência, e muito aquém do que se pratica nas conceituadas universidades britânicas (15:1).

A Folha de S.Paulo parece querer ignorar o fato da estrutura das universidades brasileiras ser completamente distinta daquela das universidades britânicas. Mesmo com tal estrutura distinta, porém, universidades como a USP e a UFRJ são responsáveis por contribuições relevantes à ciência mundial (como nos mostram os tão superestimados rankings internacionais). Universidades de elite como as citadas britânicas ou as da Ivy League norte-americana possuem algo em torno de apenas 20 mil estudantes ante os quase 60 mil da USP. Daqueles 20 mil, usualmente quase metade são estudantes de pós-graduação, que tendem a publicar mais (e, portanto, a fomentar aumento de posição nos famigerados rankings internacionais).

Além disso, nossas universidades (como a USP ou a UFRJ) cumprem a importante missão social de manter alguns dos mais importantes museus e hospitais brasileiros — instituições nem um pouco baratas e que necessitam de um número expressivo de funcionários especializados. Os principais museus britânicos e norte-americanos não estão ligados àquelas universidades: não há, portanto, como comparar o número de funcionários de uma e de outra. Só na USP, há quatro grandes museus em atividade (Museu Paulista, Museu de Arte Contemporânea, Museu de Arqueologia e Etnologia e Museu de Zoologia), além de vários pequenos museus ligados às unidades de ensino, pesquisa e extensão. Destes quatro, um deles já foi o mais visitado do Estado (o Museu Paulista, conhecido popularmente como Museu do Ipiranga), ainda que mantido apenas com as verbas da universidade.

Mais uma vez, trata-se de má-fé da Folha de S.Paulo. Será que ela considera museus e hospitais desnecessários? Será que ela considera os restauradores, conservadores, curadores, técnicos de manutenção de exposição, médicos, enfermeiros, auxilares, etc, funcionários desnecessários e inchados?

9.

Trata-se de relação abstrata, por certo, mas que deveria ser debatida no Conselho Universitário à luz do que a USP, como instituição, considera factível e se compromete a devolver para a sociedade em retribuição pelos recursos do contribuinte — se a universidade tivesse alguma clareza quanto a isso.

Não tem, pelo visto. Nada a estranhar numa comunidade acadêmica em que muitos parecem acreditar que o dinheiro nasce das árvores que o ornamentam o campus da Cidade Universitária.

Caros editorialistas da Folha de S.Paulo: considerando todos os dados expostos acima, parece-me que quem não tem clareza quanto aos problemas financeiros da USP não somos nós, funcionários e estudantes. Quem não tem clareza são vocês: recusam-se a apresentar o quadro geral de expansão da universidade, distorcendo os números e mostrando apenas alguns recortes enviesados. Recusam-se a repercutir as críticas que temos feito ao fato do governador Alckmin se recusar a repassar às universidades estaduais aquilo que as Leis Orçamentárias Anuais nos destinam por direito. Recusam-se a admitir que tanto o governo tucano de São Paulo quanto o magnífico Reitor aliam-se em um processo de sucateamento geral da universidade ao omitirem os expurgos do ICMS e considerarem suficientes os repasses distorcidos de verbas.

O que quer, afinal, a Folha de São Paulo? Ela quer uma USP saudável, repleta de bons profissionais e bons docentes, ou a quer ver sucateada, com repasses insuficientes por parte do governo do estado? O editorial deste dia 19 de agosto de 2014 parece ser uma peça de propaganda para justificar não o investimento público na universidade, mas sua precarização.

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